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no início era a transformação

  • Foto do escritor: Xérem Indisciplinar
    Xérem Indisciplinar
  • 7 de nov. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 9 de nov. de 2024

 crítica | teatro


Fotografia: Bruno Martins

Em circulação por algumas cidades do nordeste, o espetáculo Sinapse Darwin, da Casa de Zoé, passou no último fim de semana pela cidade João Pessoa, Paraíba. Com duas apresentações no Teatro de arena do Espaço Cultural José Lins do Rego a peça, de forte apelo visual e musical, explora a vida e obra do pesquisador e naturalista Charles Robert Darwin no estilo que tem se tornado característico da companhia potiguar.

Com uma dramaturgia que se realiza aos moldes do samba-enredo, que dialoga de maneira íntima com as qualidades próprias do carnaval brasileiro, Sinapse Darwin é um musical apoteótico, colorido, leve e dinâmico que tem como ponto de partida a trajetória e o legado do naturalista britânico. Como uma escola de samba que repercute o samba-enredo na avenida e a quem não cabe, sob o risco de se deslocar da lógica da atenção flutuante do folião carnavalesco, imerso em um turbilhão de informações, se aprofundar demasiado em uma temática escolhida, o espetáculo não se prende aos detalhes biográficos do biólogo, apresentado ao espectador em perspectiva (quase) cronológica, através de episódios que contemplam os principais momentos de sua existência (nascimento, adolescência, descobertas afins).

Se por um lado a obra apresenta o autor de A Origem das Espécies, por outro, é interessante notar que cada um dos quadros dramatúrgicos é menos a transposição de um episódio biográfico relativo à existência de Charles Darwin do que o motivo de uma celebração, um dispositivo para a construção e exploração do poder de afecção do som e das imagens. No decorrer da peça os atores cantam, dançam, tocam instrumentos, realizam truques, passeiam e até se penduram na enorme estrutura cenográfica criada pela companhia.

Nesse segundo espetáculo da Casa de Zoé, estreado em 2021 na cidade de Natal, o grupo mergulha mais fundo em sua pesquisa com o teatro musical e a questão plástica iniciada em 2017 com Meu Seridó. Como no primeiro espetáculo do grupo, esse processo de pesquisa se realiza a partir de um modo muito peculiar e até mesmo nordestino. Mesmo sem trabalhar diretamente com um tema que pode ser facilmente associado ao nordeste, como é o caso da primeira obrada estreada pela companhia, há algo muito regional (não regionalista, diga-se de passagem).

Nesse sentido, mais do que os episódios que narram quem foi Charles Darwin, o que torna o espetáculo interessante é o modo como ele se constrói a partir daquilo que é próprio da teoria da evolução pela seleção natural, um dos grandes feitos do biografado; a transformação. Publicada em 1859, a teoria evolucionista afirmava os processos de modificação e transformação das espécies ao longo do tempo, o que confrontava a ideia reinante de que as espécies surgiram no planeta terra tal como se apresentavam. É certo que o senso comum distorceu completamente as ideias darwinistas quando transformou a sua teoria no simples pensamento de que a espécie humana evoluiu dos macacos. Darwin nunca afirmou tal coisa, apenas identificou que as espécies possuem um ancestral comum que se alterou e chegou a diferentes formas, algumas delas extintas.

Nesse sentido, o caráter de transformação da teoria darwiniana está presente no espetáculo de maneira figurada, quando, por exemplo, os atores com máscaras de macacos se enfileiram em uma espécie de escada evolutiva. Há aqui uma apropriação do estereótipo imagético da teoria, figura quase onipresente nos mais diversos livros didáticos de biologia do país. Mas aqui, ao contrário da imagem estereotipada, os macacos não “evoluem” para humanos. Desde os níveis mais próximos do chão eles se apresentam como híbridos homem-macaco. Logo, mais do que representar a descendência (o que seria equivocado), a obra apresenta uma imagem que atesta uma semelhança entre ambos que se revela em dados de cientistas quando estes afirmam, por exemplo, que compartilhamos cerca de 99% de nossos genes com os chimpanzés.

Para além da figuração, a transformação e os processos de adaptação se constituem enquanto ordem poética; se as espécies não são fixas, paradas no tempo, tampouco é o espetáculo. Isso nos aparece através dos infindáveis processos transformativos que ocorrem no decorrer de apresentação da obra. No cosmos poético de Sinapse Darwin nada é permanente, tudo muda o tempo inteiro. Cada ator absorve um “papel” para, em seguida, entregá-lo a outro colega de cena. O cenário, composto de catracas, roldanas, equipamentos eletrônicos, sintetizadores e outro montante de coisas, é outro aspecto por onde a transformação se constrói poeticamente e o exemplo disso é um grande globo que, pendurado no centro da estrutura criada pelo grupo, passeia pelo espaço e se transforma em uma diversidade de coisas, incluindo uma enorme e caricata barriga. O mesmo acontece com a música, cheia de ápices e movimentos inesperados.

Com direção geral e dramaturgia assinadas por César Ferrario, Sinapse Darwin se constrói a partir de um forte apelo a linguagem própria do entretenimento. Trata-se de uma faceta mais mercadológica e menos experimental do trabalho de Ferrario, criador de espetáculos mais intimistas como Guerras Formigas e Palhaços. Nessa obra, assim como em Meu Seridó, o diretor parece construir a encenação com o intuito de atrair e magnetizar o grande público, cada vez mais distante dos teatros e afeitos a outras formas de entretenimento. Contudo, se há nas últimas criações de Ferrario uma inegável dimensão comercial, algo genuinamente artístico parece se sobressair quando a encenação convida o público a criação.

Em Sinapse Darwin o espectador é convocado a participar, se não diretamente, mas através de uma abertura que a encenação dá a ele para construir os sentidos da obra. Mais do que assistir passivamente, o público é levado a colaborar com a criação da cena, a preencher as lacunas, elaborar recortes e realizar os seus próprios entendimentos acerca do que lhe é apresentado. O forte apelo imagético da obra, ao invés de sucumbir a um impulso de representação da realidade, busca o fascínio do fantástico-maravilhoso e do exagero numa lógica de encenação que é própria do universo onírico, exigindo do espectador também um elaboração poética.

Em um contexto de produção teatral marcado por gambiarras e precariedades diversas, a Casa de Zoé se destaca na cena potiguar – e mesmo nordestina – com espetáculos repletos de parafernálias, máquinas e maluquices. Fundada em 2017 pela iniciativa da atriz Titina Medeiros, o grupo dá um passo para afirmar o seu projeto ambicioso de se tornar uma companhia estável, com produtos de ótima qualidade artística e economicamente sustentável em um ambiente em que a cultura teatral não é tão explorada mercadologicamente. Claramente feitas sob o anseio de se comunicar com mais e maiores plateias, as obras da companhia potiguar parecem cada vez mais apontar para a fundação de uma lógica mainstream, criando um contraponto bastante interessante em relação a todo um grupo de obras “alternativas” que se multiplicam na cena potiguar.


Texto publicado em 9 de novembro de 2024

Escrito por Ronildo Nóbrega







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